sábado, 9 de outubro de 2010

História da Odontopediatria no Estado de São Paulo

História da Odontopediatria no Estado de São Paulo
Marly de Campos Russo
Profa. Titular de Odontopediatria (aposentada)
Faculdade de Odontologia de Araçatuba, UNESP

Célio Percinoto
Prof. Titular de Odontopediatria
Faculdade de Odontologia de Araçatuba, UNESP

Tema complexo por se tratar de uma disciplina de aplicação clínica, portanto, fundamentada em princípios de ciências básicas e na evolução do conhecimento obtido por outras disciplinas clínicas.

Especificamente para nós, alguns fatores devem ser lembrados:

I – Criação dos Institutos Isolados de Ensino Superior do Estado de São Paulo

Necessidades e dificuldades de formação de pessoal de nível superior já se faziam sentir no início do século XIX. Para obter essa formação, os brasileiros da elite econômica se dirigiam à Europa, procurando-a mais comumente em Portugal. Mas, a invasão de Napoleão Bonaparte, mais sua luta pela imposição do Bloqueio Continental, levaram a Família Real a fugir para o Brasil Colônia. As soluções tinham que ser encontradas por aqui.

Assim, em 1908, D. João VI criou as duas primeiras escolas de medicina no Brasil, uma na Bahia e outra no Rio de Janeiro. A elas iam sendo agregadas Escolas posteriormente criadas. E esse foi o modelo de criação de Universidade mais usado no  Brasil.

Já no século XX, com o desenvolvimento sócio-econômico e político do Estado de São Paulo, a demanda por cursos superiores oficiais ia se avolumando, não podendo ser atendida simplesmente por aumento numérico de vagas já existentes.
Na década de 50, o Governo Paulista, através da Secretaria da Educação, deu início a estudos para a criação dos Institutos Isolados de Ensino Superior, espalhados pelo interior do Estado. Para isso, a Secretaria constituiu uma Comissão de Professores Catedráticos da Universidade de São Paulo, que foram: Francisco Degni, Paulo de Toledo Artigas, Zeferino Vaz e Carlos Aldrovandi.

Foram então criadas as Faculdades de Farmácia e Odontologia que se seguem:
  1. De Araraquara: de origem particular, criada em 1923, foi incorporada aos Institutos Isolados, sendo a mais antiga integrante da hoje UNESP.
  2. De Ribeirão Preto, criada em 1924, como Escola Particular, encampada pelos Institutos Isolados, permaneceu pouco tempo entre eles (sob a direção do Prof. Francisco Degni). Em 1974, passou a integrar o Campus da USP da cidade.
  3. De São José dos Campos, implantada pelo Prof. Dr. Cervantes Jardim, também catedrático da USP.
  4. De Piracicaba, apenas pouco mais de uma década como Instituto Isolado, sob a direção do Prof. Carlos Henrique Robertson Liberalli, passou a integrar a UNICAMP.


Adendo - A primeira Escola de Odontologia do interior paulista foi criada em 1914, em Piracicaba, com o nome de Washington Luís, posteriormente mudado para Prudente de Moraes. Essa década foi atingida por turbulências políticas e em 1931, um decreto baixado por Getúlio Vargas determinou o fechamento de todas as Faculdades de Odontologia do Estado de São Paulo. Essa medida atingiu também a Odontologia de São Paulo, reaberta em 1933, graças à ação do médico Prof. Dr. Benedito Montenegro, seu depositário oficial.

A Escola Prudente de Moraes não teve a mesma sorte e formou sua última turma em 1935, deixando muitos dos ex-alunos com problemas na obtenção e no reconhecimento dos diplomas.

Quanto à de Araraquara e à de Ribeirão Preto, não temos notícia do acontecido durante a ditadura de Vargas.
  1. Faculdade de Araçatuba – a primeira das isoladas a entrar em funcionamento.


Esses institutos tinham que ser fundamentados na docência, na pesquisa e na extensão de serviços à comunidade, além do aprimoramento acadêmico.
Para isso, os professores teriam o regime de trabalho de dedicação integral e seriam contratados por dois anos, contratação essa renovável por mais dois, para a necessária defesa de Tese de Doutoramento.

Os Professores Catedráticos da Universidade de São Paulo, criadores, instaladores e/ou diretores podem ser considerados como os desbravadores Científicos do Interior do Estado.

Para Araçatuba, o Instituto mais distante da Capital, foi designado como Diretor o Prof. Dr. Carlos Aldrovandi, que aceitou a incumbência com orgulho e dedicação, apesar da deficiência física da qual era portador. Não titubeou em deixar a Capital, com sua adorada casa no Pacembu, seu consultório à Rua Bráulio Gomes, e ir com a esposa e duas filhas adolescentes , embrenhar-se em Araçatuba, situação essa que deve ter sido similar a dos outros desbravadores envolvidos.

O Dr. Carlos era ainda consultor (ou atribuição similar) da firma Odontológica S. S. White, que lhe deu suporte até o fim de seus dias.

E ele nos surpreendeu desde o início: Catedrático de Prótese na USP, decidiu que “sua” faculdade seria focada em prevenção, isso há mais de cinqüenta anos atrás! Assim, as Disciplinas de Odontopediatria e de Higiene e Saúde Pública eram as que mais mereciam sua atenção. Homem de moral elevada, extensa cultura profissional e humanista, muito gentil e cordial, transformava-se ao nos cobrar a apresentação da tese.

Apesar do valor de seu trabalho, enfrentou, em 1961, um levante por parte dos professores, que queriam substituí-lo na direção, ingenuamente ignorantes dos Estatutos dos Institutos. Após as devidas e desgastantes investigações, foram dispensados de suas funções junto à Faculdade, alguns “a bem do serviço público”. E isso aconteceu antes da instalação do Governo Militar no país! Mas, não houve baixa na Odontopediatria.

E um de seus orgulhos foi o primeiro concurso de doutoramento dos Institutos Isolados ter acontecido em Araçatuba, em 1963 (concurso do Dr. Miguel Russo), com banca composta por Catedráticos da USP!

Continuamos com nosso trabalho em um Instituto Isolado, porém, não tão isolado assim. Os contatos com colegas de Ribeirão Preto, Piracicaba, Araraquara, São Paulo e Bauru eram relativamente freqüentes e traziam atualização.

Em Araçatuba, a Odontopediatria foi iniciada sob o comando do Dr. Orlando Ayrton de Toledo. Seu primeiro auxiliar em tempo integral foi o Dr. Sosígenes Victor Benfatti. Juntei-me a eles e depois ganhamos o auxílio do saudoso Dr. João Nivaldo Andrioni.

Era produtivo trabalhar sob o comando do Dr. Ayrton. Iniciou-se na Disciplina de Anatomia e sempre estudou de tudo, com ênfase na Psicologia. Conceitos morais bem arraigados eram seu forte. Porém, trocara Araraquara por Araçatuba, deixando lá pais e irmão. Logo depois de iniciar-se nossa Odontopediatria, ele foi convidado para concorrer à Odontopediatria de Araraquara, e tinha bons motivos para voltar para lá. Havia um candidato, mas acho que seria difícil para ele ser o vencedor, pelos conhecimentos e títulos que Dr. Ayrton já possuía. Aí ele analisou conosco: “o Celso é uma boa pessoa, tem tantas razões quanto eu para querer seu lugar lá.” E não se inscreveu.

Outra passagem: em minha defesa de tese de Doutoramento (ele participava da Banca) disse que sua aluna ultrapassara o Mestre. Eu respondi que isso não aconteceria nunca, pois meu Mestre não era estacionário. E não era  mesmo: em 1981 foi para a Faculdade de Ciências da Saúde da UnB, como coordenador do Departamento de Odontologia, onde ficou até 2001, quando foi desligado por força da aposentadoria compulsória. Mas não parou! Permanece ligado à Odontopediatria por cursos de especialização mantidos por associações de Classe.

Nosso time: Ayrton, Benfatti, Nivaldo e eu, tivemos boa oportunidade de trabalho e obtivemos algumas informações sobre vários assuntos de nossa área: morfologia de canais de decíduos, aquisição de flúor pelo esmalte, aplicação de selantes, tratamentos pulpares de dentes decíduos e permanentes jovens, etc. E o melhor: todo trabalho era entremeado de brincadeiras. Quando o Benfatti foi submetido à remoção de um pólipo nasal e a peça veio para São Paulo para o exame histopatológico, ficamos sobressaltados. Com o caráter benigno estabelecido, aguardamos sua volta ansiosos e o Dr. Ayrton nos avisou: “caras decepcionadas, por favor”. Quando ele entrou no Departamento, foi recebido assim: “ah, você voltou! Já havíamos dividido tudo! Eu ia ficar com seus shorts, o Nivaldo com as chuteiras e tênis, e a Marly ia arrumar seus jalecos para ela!” Foi uma festa!

Nossas pesquisas contavam sempre com o apoio orientação/colaboração dos Professores Roberto Holland (endodontia) e Tetuo Okamoto (cirurgia), que esmiuçavam os processos de reparação pulpar (especialmente pela ação do hidróxido de cálcio) e reparação alveolar.

O número de docentes foi ampliado com a contratação de Rosangela dos Santos Nery e José Devides de Oliveira, ainda na década de 70. Mais recentemente (o que pode significar mais de 20 anos!) foram agregados Célio Percinoto, Robson Frederico Cunha, Alberto Carlos Bottazo Delbem e Sandra Herondina Avila Aguiar.
A contratação do Percinoto tem um história bem interessante também. Em 1978, o Dr. Sérgio Catanzaro Guimarães (da Patologia da USP de Bauru) procurou-me pedindo a sugestão de alguém que ele pudesse contratar (já tinha a vaga e a verba). À minha indicação seguir-se-ia a contratação. O Percinoto, ex-aluno nosso, estagiava na nossa Anatomia e foi ele quem indiquei. Foi contratado sem mais delongas.
Ainda não sei qual a reação do Sérgio mas, após cinco anos, o Célio se interessou em voltar para Araçatuba, mas agora com interesse em Odontopediatria, disciplina pela qual responde até hoje... sem contar que ocupa a presidência da Sociedade Brasileira de Pesquisa Odontológica.

Pesquisas sobre flúor adamantino foram iniciadas pelo Sosígenes e atualmente estão bastante ampliadas pelos trabalhos do Delbem, que nelas foi introduzido pelo Jaime Cury, de Piracicaba.

Os cursos de Especialização em Odontopediatria foram iniciados em 1983. O de Mestrado em 1993 e o de Doutorado em 1995. O programa de Pós-Graduação de Araçatuba, tal como o de Ribeirão Preto (USP) tem conceito 5 da CAPES, seu grau mais alto de avaliação.

Além dessa produtividade, a extensão de serviços à comunidade é muito bem representada pela Clínica de Bebês, idealizada pelo querido Luís Reynaldo de Figueiredo Walter (Londrina), possuindo convênio com a Prefeitura de Araçatuba.

Mencionei os contatos entre os institutos isolados. Esse contato acabou levando a trocas de docentes: Bernardo Vono e Astrid, por exemplo, saíram de Araraquara e foram para Bauru, no que foram seguidos por outros. Acho que só se manteve firme o interessante time de Ribeirão Preto, das meninas Adevina, Delza, Sada e Lea, com a sábia (e extra-oficial) orientação do Prof. Guilherme Simões Gomes, que depois trouxe o Dr. Carlos Alberto Conrado, quebrando a hegemonia feminina e dando mais ânimo às pesquisas.

A partir de 1975, várias reuniões entre diretores e professores dos Institutos Isolados e o Coordenador da CESESP (Coordenadoria do Ensino Superior do Estado de São Paulo), Prof. Luiz Ferreira Martins, visando a organização dos Institutos Isolados sob novas bases, culminando com a união deles na formação da UNESP – Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho.

II – Fundação do Grupo Brasileiro de Professores de Ortodontia e Odontopediatria

Buscando a análise de dificuldades no ensino e padronização de conteúdo programático, um grupo de professores de escolas paulistas das disciplinas de Ortodontia e Odontopediatria resolveu se reunir em São Paulo, em 1963, na Faculdade da Rua Três Rios. O resultado foi muito animador e a reunião seguinte foi marcada para ser realizada em Araçatuba, dali a um ano, o que realmente aconteceu. Lembro-me do Dr. Jorge Vogel, de São Paulo, discorrendo sobre orientação do desenvolvimento da oclusão dos dentes permanentes e o exame radiográfico! Não existia nem o Raio-X panorâmico!
Mas o que resultou das considerações do Vogel (apoiado pelo Dr. Muller de Araújo, da Ortodontia de Piracicaba) foi a Odontopediatria assumir seu importante papel no exercício da Ortodontia Preventiva.

Essas reuniões tiveram tanto êxito que, em 1969, chegou-se à fundação do Grupo Brasileiro de Professores de Ortodontia e Odontopediatria, cujos encontros anuais trazem benefícios extraordinários, a docentes e estudantes de pós-gradução.

III – A USP e a Pós-Graduação

Após as reformas universitárias do Ministério da Educação (1961 e 1968), a carreira docente pode se desenvolver plenamente.

A Faculdade de Farmácia e Odontologia de São Paulo, em 1934, foi incluída como um dos institutos da Universidade de São Paulo, criada pelo Governador Armando Sales de Oliveira..

Quanto à 12ª Cadeira da Odontologia, constituída pela Ortodontia e Odontopediatria, tive a grata oportunidade de freqüentá-la, durante estágio (não existiam ainda os cursos de pós-graduação) realizado no ano de 1965. Nessa época, o responsável era o Prof. Nicolino Raimo. Após seu afastamento, um trio despontou no então Departamento: Myiake Issao (o cientista falso rebelde), Tadaki Ando (o fleugmático eficiente) e Antonio Carlos Guedes-Pinto (a tenacidade personificada).

Sob esse Triunvirato, surgiram os cursos de pós-graduação que, definitivamente, alavancaram a evolução da Odontopediatria em todo o Brasil.

Os dois primeiros já nos faltam, mas o Prof. Guedes-Pinto continua sua ação formadora na Odontopediatria. Aliás, não posso deixar de mencionar sua atitude de humildade demonstrada no Encontro do Grupo, realizado em Vitória, em 1977. Em sua exposição sobre terapia pulpar em decíduos, ele disse: “Agora vou dar uma notícia que vai alegrar a Marly – o formocresol é uma porcaria!”

Tínhamos posições opostas quanto a esse material, mas, ele o defendera em um livro! Sempre foi o melhor exemplo de UFANISMO pela USP que já conheci! E eu o conhecera em São Paulo, no início de sua carreira de pesquisador, sob a orientação do Prof. Catedrático de Histologia, Prof. Wilson da Silva Sasso, que era extremamente exigente.

Além dos três docentes destacados acima, outros iam sendo contratados, com muitos benefícios à Disciplina. No cenário observável no biênio 1965-1966, lá estavam o Raphael Sendyk, o Ronaldo Fazzi, o Adolpho Chelotti, a Leda Katalyan (poliglota e perfeccionista!), todos auxiliando o Issao para a sua defesa de doutoramento.

IV – Atividades das Associações de Classe

Ah! E o importantíssimo papel desempenhado pela Associação Paulista dos Cirurgiões-Dentistas, com a criação da EAP! Essa Escola de Aperfeiçoamento Profissional sempre propiciou numerosos cursos de Odontopediatria.

É claro que a evolução de técnicas, materiais e equipamentos foram cruciais para a evolução da Odontopediatria (a alta-rotação eu só conhecera no 4º ano do curso de graduação), mas os Odontopediatras eram informados das novidades (são ainda) através dos congressos realizados pelas associações.

Os paulistas parecem especialistas na promoção desses eventos: Emil Adib Razuk e Luiz Antonio Todescan dedicaram muito de seu tempo a isso, sendo bastante exitosos.

Nenhum comentário:

Postar um comentário